Cada buraco no seu quadrado
Aqui
na Amazônia as estações climáticas se dividem em duas: uma que chove mais e a
outra que chove menos, sendo que praticamente todo dia chove o dia quase todo,
a qualquer hora. Fenômenos da natureza têm dessas coisas que pouco podemos fazer
ou contestar. Ela despenca do céu à vontade como as águas que jorram das
mangueiras dos carros pipas durante operações anti-incêndios.
Depois
que o céu para de chorar é possível perceber os impactos, principalmente nas
cidades, expondo facilmente as fragilidades estruturais como sistemas de esgoto,
pavimentação asfáltica e drenagem. Mas são nas vias que surgem os personagens indesejáveis
para muitos e adorado por poucos que sabem tirar proveito dos buracos.
Na
cidadela Esquecida tem uma rua chamada Lamentos, que cruza a cidade de uma
ponta a outra, e bem no meio, próximo à esquina com a passagem Descaso tem um cemitério,
e na frente reside um buraco muito resiliente. É bem verdade que ele é um pouco
a mais que os outros infindáveis numericamente existentes. O pessoal da
prefeitura até entope, paliativamente, mas toda vez que chove e com o intenso vai
e vem de veículos ele é aberto.
-
Eu adoro ficar assim: aberto, tomando banho de sol durante o dia, e ainda posso
tirar sarro do meu amigo buraco Cova, que fica ali, do lado de dentro. Só vê o movimento
de pessoas quando tem enterro ou no Dia de Finados, quando lhe dão muito trabalho.
Comigo não, a coisa é diferente. Quem dá trabalho sou eu!
-
Bom dia, amigo Buraco Rua.
-
Bom dia, doutor Cova.
-
Aliás, por que doutor?
-
Porque você é muito formal. Até para serem enterrados em você tem ritual. Engraçado,
não faz tanto tempo que você foi entupido, e já está na ativa. Apesar de tudo,
eu quero mesmo é falar sobre nossos trabalhos, importâncias e contribuições sociais.
-
Verdade, amigo Rua. Sabes de uma coisa, eu estou convencido de que sou o mais
importante para a sociedade, de que meu trabalho é que contribui incisivamente
para o bem-estar das pessoas.
-
O que fez você pensar assim?
-
Pensa bem, com exceção das pessoas que são cremadas, que, aliás, são poucas, as
demais são enterradas em mim. Eu fico ali parado, assistindo as pessoas se
despedindo de quem morreu e logo em seguida sou fechado, claro, por pouco
tempo, é bem verdade. Como tem morrido gente nos últimos tempos. Parece até que
estamos em guerra. É um abre e fecha danado. Além disso, quem se deita em mim,
fica em paz, descansa. Mas me conta, e você?
-
Descordo plenamente da sua opinião. Quem é mais importante sou eu. Eu até
promovo a riqueza de quem se especializou em cuidar de mim nas cidades e até no
campo, em alguns casos, ainda lhe ajudo, Cova. Pois como sou a maioria nas ruas
e estradas desse país, muitos até tentam desviar de mim, mas acabam se
acidentando e indo parar dentro de você. Se os governantes cuidam para que eu
fique mais tempo aberto é porque sou importante.
-
Muita presunção de sua parte. Sei que existem muitos outros irmãos buracos
importantes nesse país e que fazem sua parte com grande primor. Veja por
exemplo o imenso buraco abertos na dívida pública!
-
Estás enganado. As pessoas e fatos importantes dão IBOP, são falados, comentados
pela opinião pública e na imprensa, ou não tens assistido aos telejornais? Não
faz muitos dias que fui matéria até no Fantástico. Quase que peço uma música.
-
Está chegando mais uma pessoa para ser enterrada. Agora tenho que ir cumprir
minha missão. Depois nos falamos.
Agora eu vou tomar meu banho de sol, afinal, daqui a pouco vem a chuva e eu vou ficar cheio d’água ou submerso. Se bem que assim é melhor, ninguém me vê e não poderá desviar. Como é bom ser buraco no Brasil. Quando eu crescer e me tornar presidente vou colocar como slogan de meu governo: “O futuro começa aqui”!
Agora eu vou tomar meu banho de sol, afinal, daqui a pouco vem a chuva e eu vou ficar cheio d’água ou submerso. Se bem que assim é melhor, ninguém me vê e não poderá desviar. Como é bom ser buraco no Brasil. Quando eu crescer e me tornar presidente vou colocar como slogan de meu governo: “O futuro começa aqui”!
Por Haroldo Gomes
Nenhum comentário:
Postar um comentário