Entre bulas e receitas de bolo
Pela
crescente onda de protestos e críticas direcionadas à classe política (ou a grande
parte dela) que ocorre intensamente país afora tem como pano de fundo o não cumprimento do Artigo 5º da Constituição Federal. O qual diz “que todos sem
distinção somos iguais perante a lei”. Um dos questionamentos se fundamenta pela
distinção que há entre o poder exercido pelo povo e o exercido pelas autoridades
constituídas. No tocante aos políticos, os do Legislativo têm a prerrogativa de
criar leis e definir seus próprios salários, como também do Executivo e do
Judiciário. É uma prática viciosa e perigosa semelhante ao enredo de novela das
seis, em que o diretor coloca um bando de macacos para cuidar do bananal. Uma
hora as bananas acabam. E quando isso ocorre, sobram apenas cascas e prejuízo. Como
agora. E agora?
Não
existe uma regra geral, uma vez que há exceções. Mesmo que raras. O que não é o
caso de um antigo amigo; não sei se ainda é, pois ao entrar para a política ele
me veio com essa pérola: “amigo, democracia só existe nas urnas”. Em partes ele
tem razão. De fato, nossa frágil democracia funciona como bula de remédios. Como
aquelas que vêm com o modo de usar escrito com letrinhas minúsculas (quase um
teste para quem tem problemas na visão) na maioria das vezes não as lemos. Exceto
quando nos automedicamos. Em geral, elas dizem uma coisa; e os médicos outra. Por
analogia é como a gente ter que votar e escolher nossos representantes com uma
intenção baseada em suas promessas; uma vez eleitos eles assumem outra forma de
usar as leis e o poder em benefício próprio. E aí chegamos nesta queda de braço:
mandamos leis de iniciativa popular para eles, e eles as desfiguram. Isso
quando aprovam, como ocorreram com as Leis da Ficha Limpa e Anticorrupção.
O
escritor Rubem Alves diz que “a poesia é a ação do poeta na maneira de ver o
mundo de forma diferente das demais pessoas. A beleza dessa ação chama-se
metáfora”. Há sempre uma para cada situação. Claro, depende muito do poeta. Assim
sendo, fica fácil de perceber que milhares de novos poetas estão surgindo e indo
às ruas para contestar o país que é visto de forma dicotômica; bem diferente da
que nossos representantes veem. Não há beleza alguma na miséria, na falta de
médicos e remédios, de emprego, de renda... Para desnivelar ainda mais a
balança, do lado do trabalhador, o Governo Federal congelou os investimentos por
até 20 anos em setores vitais como saúde e educação. E assim, nesse continuísmo
sem fim, nossos políticos seguem firmes a regra da receita de bolo: quando o
orçamento mingua e falta fermento para aumentar suas fatias do bolo, a regra é aumentar
a contribuição do trabalhador. Agora, até os idosos entraram na lista desses
ingredientes. Com idade mínima de 65 anos para se aposentar vai precisar de
muita sorte para usufruir deste benefício.
Sem
muito poder de reação, de nossa parte, o país sucumbe com a pandemia econômica
que atinge a União, estados e municípios. Imersos em dívidas, quebrados, falidos,
por teimosia de seus gestores que insistem na mesma receita: gastar mais do que
arrecadam. Porém, na outra ponta da situação vemos a mesma prática viciosa há
décadas. Gastança com assessores especiais, nepotismo, desvio de finalidades do
dinheiro público, corrupção, sem falar nos aumentos desnivelados de seus
salários e mordomias, aliás, muitas mordomias. Ai, chegou a conta, e como habitual,
empurrada para o trabalhador. Ao longo do tempo o brasileiro vem aprendendo que
o prato pode ser indigesto, aqui ou em qualquer lugar, mas o sabor, não. Para
que isso ocorra, basta trocar de cozinheiro ou de restaurante. Nas ruas, nas
redes sociais, nas igrejas e nas universidades ecoam vozes que querem de fato poder
exercer o seu direito, que é trocar o cozinheiro-chefe, e assim podermos sentir
o sabor dos direitos respeitados; do contrário, em breve não haverá ingredientes,
e voltaremos à barbárie, como já acontece em muitos países latinos.
A
língua é a beleza do mundo, capaz de aguçar nossa imaginação, de tingir
pictoricamente um quadro denunciando as traquinagens dos que dela por meio de
seus discursos vazios e sem fundamentos tentam furtar sua beleza. Não é lúdico
que muitos políticos – sem generalidades – pensem o mundo pelo olhar de uma
criança, em que todos os absurdos são permitidos.
Não somos mais os mesmos. O país não é mais aquela
creche de tempo integral em que os pais retornam ao fim do dia só para pegar os
filhos sem se importarem com o que eles fizeram durante o dia. Por que, neste
caso, o problema é da escola. Na nossa democracia é de todos. E dela temos que cuidar
mesmo que não gostemos de política, é por meio dela que todas as decisões são
tomadas e de alguma forma elas afetam o agora, o amanhã. Leiamos as bulas e ousemos
participar adicionando outros ingredientes à receita, antes que o bolo simplesmente
de fato acabe.
Por Haroldo Gomes